A FORÇA DA ANCESTRALIDADE NOS MANTÉM DE PÉ

Benzimento -Arruda. Still do Documentário Encontro de 30 anos da Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas y de la Diáspora em 2022. Foto por Anastácia Flora Oliveira.

Por Anastácia Flora Oliveira

Fotógrafo e escritor Anastácia Flora Oliveira escreve sobre o poder da ancestralidade e do activismo das mulheres negras na diáspora africana.


A ancestralidade é o princípio base e o fundamento maior que estrutura toda a circulação da energia vital.
— Leda Maria Martins

Desde que entendi a importância de reverenciar de onde eu venho, sempre que me apresento digo de onde eu sou. Saudar a terra e pronunciar o nome do lugar, foram alguns dos ensinamentos que eu aprendi com meus mais velhos. A palavra evoca força.“A palavra é um invocador, um instrumento de invocação/evocação/revelação” (NASCIMENTO, 2021, p. 247). É por isso que nós pessoas negras ao pronunciarmos os nomes das nossas ancestrais, estamos pedindo força e proteção para continuarmos seguindo o nosso caminho. Aqui neste texto quero trazer a força ancestral de algumas mulheres negras que em períodos e lugares diferentes lutaram contra o processo colonial. Essas ancestrais continuam presentes nos guiando e nos orientando radicalmente para seguirmos lutando por nossas libertações.

A ancestralidade e a espiritualidade são ferramentas fundamentais para nós, pessoas negras em diáspora. A ginga e a mandinga são fundamentos primordiais para nossa existência. A Rainha Nanny, foi uma líder dos Maroons na Jamaica no século XVIII. Os Maroons jamaicanos foram grupos de escravizados fugitivos que estabeleceram e construíram comunidades autônomas que guerrilharam contra as opressões espanholas e britânicas no período das escravidão na Jamaica.Entre os anos de 1725 e 1740, a Rainha Nanny liderou os Maroons travando inúmeros conflitos contra a domínio britânico. Além de ensinar técnicas de guerrilhas, sua autoridade era reverenciada e temida por seus conhecimentos de plantas e ervas medicinais. A espiritualidade era importante para os Maroons. Toda estratégia de confronto envolviam práticas espirituais que também alimentavam um sistema de crenças africanas conhecidas como “myal-obeah” (uma prática espiritual caribenha que cultua os ancestrais africanos).

Foto 1: Yalorixá Mãe Graça de Nanã/2023. Foto 2: Yalorixá Mãe Graça de Nanã, mostrando folhas sagradas/ 2023. Foto por Anastácia Flora Oliveira.

Segundo o site Biografias de Mulheres negras, o nome Nanny é derivado de Nana, “um título de respeito e autoridade empregado em referência às rarinhas-mães nas Sociedades akans da África Ocidental. Ela nasceu em uma comunidade do povo Koromantee, na Costa do Ouro, atual República de Gana.” Nanny é uma referência na Jamaica por sua luta contra as opressões coloniais, por ser responsável em preservar a cultura e tradições africanos e mostrar a importância de cultuar os ancestrais. Assim como Rainha Nanny, Dandara dos Palmares foi também uma mulher negra que liderou movimentos e lutas contra o domínio português no período da escravidão no Brasil. Ela liderou, juntamente com Zumbi, seu companheiro de vida e de luta, o Quilombo dos Palmares, que fica localizado no estado brasileiro de Alagoas. Os quilombos foram espaços de resistência ao período colonial, onde negros escravizados fugidos formavam comunidades buscando liberdade, resistência ao processo colinial e pertencimento com origens africanas. No Brasil existiram e ainda existem inúmeros quilombos, principalmente no estado da Bahia. Rainha Nanny e Dandara dos Palmares foram líderes que tiveram a frente de lutas libertando centenas de negros escravizados e construindo um espaço de libertação em meio a escravização na diáspora.

Os quilombos e os maroons são espaços radicais de resistência que elaboram possibilidades e rotas de vida. Para Beatriz Nascimento, historiadora negra brasileira, o quilombo é um espaço onde os negros em diáspora organizaram uma sociedade com seus hábitos, seus costumes, sua cultura e suas formas de ser com influências africanas que estendem o período de escravidão e também expande ao conceito somente territorial. O quilombo é também um espaço simbólico do corpo. O quilombo estabelece um sentido de nação africano bantu. No documentário Orí, Beatriz Nascimento afirmou que “O quilombo surge do fato histórico que é a fuga.É o ato primeiro de um homem que não reconhece que é propriedade de outro.” Neste sentido, o quilombo seria a consciência de ser livre sem as correntes do cativeiro. Para Beatriz, o poder evocado no quilombo é a consciência de si, da sua origem e história. “Cada indivíduo é o poder, cada indivíduo é o quilombo” (Beatriz Nascimento). Assim, entendo que este movimento de consciência de si enquanto pessoa negras em diásporas são acionados também quando cultuamos os orixás e os ancestrais nos terreiros. Os terreiros de matrizes africanas são espaços onde temos acesso e entendimento sobre a nossa ancestralidade. As matriarcas do candomblé no Brasil são mulheres negras detentoras de sabedoria ancestral, líderes negras religiosas que lutam até hoje pela libertação do povo negro, a partir do conhecimento da nossa história.

Yalorixá Mãe Graça de Nanã com alguns dos seus filhos no Ilê Axé Gilodefan/2023. Foto por Anastácia Flora Oliveira.

A Yalorixá (Yalorixá são sacerdotisas e líderes espirituais de religiões afro-brasileiras) Mãe Stella de Oxossi nos disse: “Meu tempo é agora!”. Essa líder religiosa que esteve à frente de um dos terreiros mais antigos de Salvador, o Ilê Axé ÒPÓ ÀFONJÁ, nos direciona até hoje com seus escritos e falas mesmo depois da sua partida. Essa frase é emblemática porque penso que a ancestralidade é vivida com a fluidez e o espiralar do tempo. Ancestralidade não é algo estático, é uma força catalisadora que nos impulsiona a pensar e agir em outras temporalidades principalmente agora. Aprendi com Mãe Graça de Nanã, Líder do Terreiro Ilê Axé Gilodefan e minha Iyalorixá, a importância de conhecer a memória ancestral para fortalecer a energia que nos movimenta. Criamos nossas estratégias também para manter a nossa ancestralidade viva e pulsante porque ela é uma força vital. É um conhecimento poderoso que movimenta uma comunidade. Por isso que os líderes negras reafirmaram a necessidade de nos conectarmos com as forças ancestrais e espirituais.

Fotos: Ermana. Encontro de 30 anos da Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas y de la Diáspora em 2022. Sentir Still do Documentário Encontro de 30 anos da Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas y de la Diáspora em 2022. Foto por Anastácia Flora Oliveira.


Cécile Fatiman, foi uma sacerdotisa e líder espiritual vodu que influenciou grandemente a Revolução haitiana (1791–1804). Cécile juntamente com Dutty Boukman foram responsáveis pela cerimônia espiritual vodu Bois Caiman muito importante para a história de libertação do Haiti. Diante da cerimônia, todos que estavam presentes se comprometeram em lutar pela liberdade e se vingarem de seus opressores franceses dando início a Revolução Haitiana. A partir da orientação espiritual, Fatiman incentivou centenas de negros escravizados haitianos a lutarem por sua liberdade e romper com as repressões francesas coloniais. Cécile Fatiman ainda hoje é homenageada e seu nome é exaltado como uma agente radical de revolução.

Em 2022, tive a oportunidade de fotografar o evento de 30 anos da Rede de Mulheres Afrolatinoamericanas, Afrocaribenhas e da Diáspora4 que aconteceu no Brasil. No primeiro dia do evento, teve um momento de construir um altar para honrar os ancestrais. Cada grupo de mulheres que representavam um país trouxeram um elemento para compor esse espaço. Durante todo o evento, em meio às discussões sobre racismo, sexismo entre outros assuntos importantes discutidos, muitas mulheres falaram da importância de alimentarmos a nossa ancestralidade e espiritualidade para continuarmos seguindo em luta.

 

Foto 1: Sem título. Cachoeira/2021. Foto 2: Obá Izo, Filha de Xangô Nascida de novo Diáspora negra/ Recôncavo da Bahia, 2023. Fotos por Anastácia Flora Oliveira.


Fui iniciada recentemente ao candomblé, uma religião afro-brasileira no qual cultuamos os orixás, voduns e nkisis e os encantados da terra. A palavra que mais utilizamos é “Asé” que em uma rápida explicação significa “força” mas é uma palavra-sensação que transcende os significados. É algo sensorial e é sentida pelo corpo. Ultrapassa as barreiras transnacionais. Em qualquer lugar onde a diáspora negra acontece a espiritualidade é um elemento poderoso de consciência e as palavras ditas evocam poder.Neste sentido, as nossas ancestrais driblaram um sistema para que em meio às opressões pudéssemos ter conhecimento sobre nossa história e assim fortalecemos quem somos e entendemos que também somos e seremos ancestrais.

Eu escrevo este texto agora porque fui fortalecida, a partir dos meus ancestrais conhecidos ou não, a me levantar e confrontar todas as amarras do cativeiro que ainda perseguem nossas existências. É através do nosso corpo que mantemos nossa memória viva. No processo colonial em curso, nós ainda somos colocades como corpos, apenas corpos. O que eles não sabiam é que a nossa corporeidade também foi/é nossa estratégia de vida. Este corpo silenciado pela escravidão encontrou passagem para outras formas de se comunica. Através da oralidade, do gesto, da dança, da existência do nosso próprio corpo, estamos construindo outras possibilidades para e de nós, criando nossos quilombos, cultuando nossa ancestralidade e espiritualidade.

Referência bibliográfica:

  • MARTINS, L. M. Performance do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

  • NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras: Relações raciais, quilombolas e movimentos. 1. ed. Organização Alex Ratts. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

  • RIBEIRO, Tatiene. As mulheres desenvolveram um papel fundamental de liderança e articulação na revolução Haitiana (1791 – 1804). Disponível em https://almapreta.com.br/sessao/quilombo/conheca-quem-foram-as-mulheres-por-tras-da-rev olucao-do-haiti/

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