O legado de Marielle Franco se espalhou pelo mundo: Uma entrevista com Diana Mendes, diretora de estratégias do Instituto Marielle Franco

Imagem de Diane Mendes (à esquerda), Diretora de Estratégias do Instituto Marielle Franco e da feminista negra brasileira, ativista, política e defensora dos direitos humanos, Marielle Franco.

Por Anastácia Flora Oliveira

Anastácia Flora Oliveira, escritora inaugural da Black Women Radicals programa da Dandara dos Palmares, conversa com Diane Menders, Diretora de Estratégias do Instituto Marielle Franco, sobre a vida, liderança e legado da feminista negra brasileira Marielle Franco.


Marielle Franco foi uma mulher negra, mãe, bissexual, ativista, natural da favela da Maré, no Rio de Janeiro, que foi eleita vereadora do Rio de Janeiro em 2016 com 46.402 votos. Seu mandato político foi interrompido em 14 de março de 2018, quando foi assassinada junto com seu motorista Anderson Gomes em um ataque ao carro em que estavam. Antes de ser assassinada, Marielle esteve no evento “Jovens Negras Movendo as Estruturas” onde citou Audre Lorde: “Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as suas correntes sejam diferentes das minhas”. Marielle foi uma ativista feminista negra que defendeu os direitos humanos, especialmente nas favelas e periferias.

Ao perder uma amiga de bala perdida durante um tiroteio entre policiais e traficantes no Complexo da Maré, ela lutou ativamente contra as violências e abuso de poder dentro das favelas no Rio de Janeiro. Formada em Ciências Sociais e mestra em Administração, em sua dissertação “ UPP: a redução da favela a três letras” trazia críticas à atuação das unidades de política na Segurança pública. Por ter uma postura de embate e enfrentamento foi assassinada, mas quem mandou matar Marielle não imaginaria todo movimento que surgiu após esta brutalidade. No dia seguinte no mundo milhões de “sementes” se levantaram para pedir justiça. Assim também, a família de Marielle Franco cria o Instituto Marielle Franco com a “missão de conectar, potencializar milhares de jovens, negras, LGBTQIA+ e periféricas a seguirem movendo as estruturas da sociedade” e lutando por justiça. 

No dia 25/11/2024, uma semana antes do julgamento do assassinato de Marielle Franco entrevistei a diretora de estratégia do Instituto Marielle Franco, Diana Mendes, onde ela falou da importância do legado da Marielle e o papel do Instituto. No dia 31/11/2024, depois de seis anos de luta e busca por respostas, a Juíza de quarto tribunal do júri do Rio de Janeiro condenou Ronnie Lessa a 78 anos e 9 meses de prisão, Élcio de Queiroz a 59 anos e 8 meses de prisão. “ A justiça, por vezes, é lenta, cega, burra, injusta, torta, mas ela chega” disse a Juíza (uma mulher branca) Lucia Glioche ao ler a sentença dos condenados. 

Diana Mendes, tem 33 anos, paulista do ABC, é atualmente diretora de estratégias e sustentabilidade no Instituto Mariele Franco. Há noves anos trabalha como consultora dentro dos movimentos sociais de mulheres negras e na filantropia. Sua trajetória é formada pelo movimento negro e de mulheres negras onde teve acesso na universidade. Em 2018, co- fundou o projeto "Mulheres Negras Decidem" com outras quatro mulheres negras que tem como objetivo fortalecer a democracia qualificando e promovendo agendas políticas lideradas por mulheres negras no Brasil. Este projeto foi apresentado na manhã do dia do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes e com as mobilizações nacionais e internacionais contra violência política de gênero e raça o projeto ganha uma projeção. 

Foto de Diana Mendes. Foto cortesia de Diana Mendes.

Anastácia Flora Oliveira (AFO):  O assassinato de Marielle Franco em 14 de março de 2018 mobilizo inúmeros movimentos de mulheres negras que em resposta ao crime tomo as ruas em grandes manifestações pedindo por justiça a Marielle. As discussões sobre violência racial e de gênero no âmbito da política começaram a ter uma efervescência e grandes mobilizações foram e ainda são feitas como um plano de ação para que mulheres negras pudessem ocupar os espaços políticos. Diante disso, percebemos um impacto nas eleições seguintes, com inúmeras mulheres negras, LGBTQIAPN+ eleita acompanhado o legislativos. Qual a importância de transformar o luto em luta e ver o legado de Marielle Franco chegar no país todo, inclusive nos interiores?

Diana Mendes (DM): A atuação do Instituto tem muitas camadas. Tem a questão da família transformar um momento de dor e de uma luta pessoal em um movimento coletivo. Como é que a gente consegue transformar este momento de muita violência e dor em um processo maior, é justamente porque a gente está falando de um projeto de Mulheres negras. Então não era sobre a Mari. Isso fica muito expresso quando isso reverbera não só no Brasil mas no mundo. A gente gosta de chamar as pessoas que se mobilizam com a história da Mari, por esta luta pela justiça, de sementes. Então são sementes de Marielle que se espalham e que florescem em vários lugares. A organização foi criada pela família após a brutalidade que aconteceu com a Marielle.É uma organização sem fins lucrativos. A organização é dividida em quatro pilares desde que foi criada, a primeira é a luta por justiça por Marielle e o Anderson. 

A gente entende que as questões que atravessam são diferentes, mas o Anderson era um trabalhador que estava fazendo o seu trabalho; que tem uma família, deixou um filho e uma esposa. Estamos sempre em contato com Ágatha, que é esposa dele. O segundo pilar buscar preservar a memória, não só no sentido de dizer quem era a liderança da Mari, o que ela deixou, como ela atuava; mas também combater discursos de ódio, fake news e narrativas conservadoras que continuam violentando a Mari, sua imagem e tudo que representa ela como agenda de políticas de mulheres negras, de pessoas LGBTQIA+, perifericas e faveladas. O terceiro pilar é a multiplicação do legado. A gente precisa continuar fortalecendo mulheres que se colocam nas políticas institucionais nos seus territórios. E por fim, regar as sementes, a gente forma outras lideranças nos territórios para amplificar o trabalho.

A gente gosta de chamar as pessoas que se mobilizam com a história da Mari, por esta luta pela justiça, de sementes.

Colagem de Marielle Franco de Jaimee Swift.

AFO: Qual o papel formativo que o Instituto promove para que as ações sejam realizadas e concretizadas? Qual a importância da Agenda Marielle e o projeto “Não seremos interrompidas”?

DM: Um dos aprendizados que tivemos este ano é a importância de trabalhar a articulação e mobilização nos territórios. Estivemos com as lideranças mobilizando e fortalecendo. A forma como a gente consegue ver e mobilizar é em conjunto com as lideranças no território, pensando nesses processos de formação e fortalecimento. Só assim tem visto a capacidade multiplicadora da agenda. Todo nosso trabalho nos territórios só é possível graças a redes de sementes, que são em sua maioria mulheres negras, mais velhas e mães que estão atuando em seus territórios. Elas são muito importantes para nós, para concretizar junto com a gente as coisas acontecerem. São mais de 300 mulheres mobilizadas no país todo, em várias regiões. Algumas regiões são mais fortes, por exemplo, no sudeste por estarmos fisicamente no Rio de Janeiro, mas a gente tem uma rede de sementes muito mobilizadas em outros territórios como Recife, Curitiba. A gente tem um desejo de consolidar ainda mais este projeto nacional da rede. 

Sobre Agenda Marielle é um conjunto de práticas que a gente conseguiu tornar de uma forma mais concreta para levar a frente que a Marielle já pontuava, já queria, tinha visão de projeto de futuro. Então, a Agenda Marielle é este instrumento que elaboramos com oito eixos temáticos. Passa por justiça climática, saúde pública, educação, segurança, direito à cidade. Tem vários eixos temáticos que a gente olha e olha para as práticas que a Mari queria também. É o que leva o instituto, que tem a ver com os nossos princípios e valores. Então a Agenda Marielle é uma ferramenta muito importante que consegue concretizar esse processo e também é o lugar onde a gente consegue ver o comprometimento tanto de candidaturas mas também de lideranças, de movimentos, pessoas físicas que querem se comprometer com este legado e com essa agenda política. Temos alguns indicadores: este ano foram mais de 150 candidaturas comprometidas, a gente ouviu também mais de 150 coletivos, movimentos e organizações que ajudaram no aprimoramento da agenda que está na terceira edição. Isso foi bastante importante para deixá-la mais qualificada este ano pensando nas eleições municipais. A agenda é um instrumento que nos ajuda a dizer qual é a política que vamos defender, quais são as pautas que a gente vai colocar na frente. 

Por outro lado, a campanha “não seremos interrompidas” é justamente este lugar de mobilização para pensar especialmente na questão de violência política. Então a gente trabalha muito com as parlamentares da Agenda Marielle que se comprometem. A gente faz muitas ações com elas na campanha . A gente lançou ano passado a terceira edição da pesquisa sobre violência política de gênero e raça. A gente conecta muito a incidência com a campanha para mobilizar as pessoas pensando na denúncia de casos de violências políticas e também damos apoio e encaminhamos casas de violência política que chegam até nós ou que a gente tenha conhecimento. Usamos a narrativa e a comunicação para impulsionar o apoio a essas mulheres, então a campanha é uma ação importante nesse processo de mobilização e ações que o Instituto realiza.

A Agenda Marielle é uma ferramenta muito importante que consegue concretizar esse processo e também é o lugar onde a gente consegue ver o comprometimento tanto de candidaturas mas também de lideranças, de movimentos, pessoas físicas que querem se comprometer com este legado e com essa agenda política.

Foto de Marielle Franco. Foto de Marcelo Freixo/Mídia NINJA. Wikimedia Commons.

AFO: Muitas informações erradas e distorcidas foram criadas sobre Marielle vinculadas a um discurso extremista sobre os direitos humanos. Qual o papel da comunicação e qual a estratégia da Instituição para que as informações cheguem de forma segura?

DM: A comunicação na nossa estratégia é muito central. A gente se organiza internamente na estrutura institucional. Temos uma área de programas, uma área de campanhas e esta área é justamente o cruzamento entre comunicação, mobilização e articulação. Porque nada da nossa comunicação é só sobre comunicação. A gente entende que a comunicação tem que estar muito integrada com a mobilização. A comunicação precisa pensar: onde ela vai mobilizar? Qual é a narrativa? Qual a história que vai ser impulsionada? Isso é desde a criação do instituto. Tem uma importância de honrar essa memória da Mari trazendo esta narrativa para gente, este protagonismo seja para família, seja para o trabalho do Instituto e atuação da Mari. Em relação a desinformação, o instituto trabalha em rede. Seja para impulsionar a nossa narrativa e nossos conteúdos, por exemplo, a gente tem algumas metodologias de formação. A Escola Marielle é uma metodologia que a gente utiliza para formação e replicamos ela de várias formas. Este ano fizemos uma edição da Escola Marielle pensando na comunicação. 

O primeiro módulo foi feito em parceria com Alma Preta jornalismo. Iremos fazer outros módulos em parcerias com outras organizações de comunicação e mídia negras no Brasil. Então, a gente sempre está se mobilizando para impulsionar a nossa narrativa. Mas a gente se engaja também em grupos, articulações e redes que têm a ver com a desinformação. Temos muita troca com a Organização PID que é uma organização branca mas vem sendo muito parceira em nos ajudar a impulsionar as narrativas em redes sociais que a gente não tem tanto alcance como Whatsapp, Telegram. Nós precisamos estar nessas redes onde as pessoas estão. O que está sendo falado? Quais são as fake news que estão vinculadas? Como é que a gente cria estratégias de narrativas para trazer os elementos que são importantes destacar. Então, temos para além das redes sociais uma estratégia com assessoria de imprensa. Trazemos o aspecto e o protagonismo da família nessas versões para ter informações confiáveis sobre a Marielle e também sobre mulheres negras na política no Brasil porque ¨também temos distorções sobre isso. 

AFO: Peço licença aqui para trazer um trecho do samba- enredo da Mangueira campeão em 2019 com o tema: “História pra ninar gente grande”: “A história que a história não conta. O avesso do mesmo lugar. Na luta é que a gente se encontra…Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês.” Ao acessar sobre os pilares da Instituição Marielle Franco, vi que defender a memória era um deles. De que forma a memória ocupa o lugar de prioridade nas ações da instituição? 

DM: A memória já estava no coração do Instituto de uma forma transversal. É pela memória da Mari, é por este legado que se leva tudo à frente. No olhar da família isso é muito precioso para que as coisas não se percam e para ver um horizonte a partir do que já foi e de quem a Mari ela. A memória é crucial para nós e entendemos que era importante um lugar ainda mais aprofundado para isso. Então no ano passado criamos a área de memória e colocamos como prioritária. A memória da Mari é às vezes maior que a do próprio Instituto. Temos um desejo de médio e longo prazo de criar um centro de memória e ancestralidade de Marielle Franco. Neste centro de memória teremos a possibilidade de acessar o acervo da Mari que estamos começando a organizar as coisas que ela produziu, os livros, os objetos. E também entender que este lugar tem a ver com as mulheres negras dentro dos espaços no Brasil e no Mundo e como a gente tem uma ligação ancestral. O desejo da família e do instituto é que esse acervo ele ganhe vida e que a gente consiga organizá-lo e disponibilizá-lo mas também que este este centro de memória também seja esse lugar de acesso ao público que tenha formações, que tenha uma biblioteca para as pessoas acessarem e os pesquisadores estarem ali. 

A gente entende que vai ser possivelmente maior que o Instituto. A gente tem um acervo físico para organizar, mas também o acervo digital.Temos muitos vídeos, gravações, documentários, homenagens que foram feitas que a gente organiza. Tem livros que foram feitas, publicações, histórias em quadrinhos, exposições. O próprio Instituto organizou em 2022 uma Fotobiografia da história da Mari que se desdobrou numa exposição de fotos que rodou em diversos lugares no Rio de Janeiro. Já temos algumas ações de memórias que são mobilizadas como a colocação da estátua da Marielle no Centro aqui do Rio de Janeiro realizada por doações de várias atyravés de um financiamento coletivo, por mais de 1000 pessoas doando para esta ação acontecer. A gente teve um projeto de inteligência artificial que conectava discurso da Mari em momentos específicos numa linha do tempo. Você conseguia acessar a voz da Marielle. Qual discurso? Qual era a pauta e agenda colocada? São várias coisas que a gente tem organizado com muito carinho. a gente tem caminhado para estruturar ainda mais esta área de memória para ampliar e desdobrar as ações. A memória está na raiz do processo não só para família como para nós também no instituto. A importância da gente honrar quem foi a Mari e como a gente constrói e atua para nossa visão de futuro a partir disso.

E também entender que este lugar tem a ver com as mulheres negras dentro dos espaços no Brasil e no Mundo e como a gente tem uma ligação ancestral.

Fotografia da estátua de Marielle Franco, no Buraco do Lume, no Rio de Janeiro, em 28 de julho de 2022, um dia após a inauguração da estátua. Crédito da foto: Parzeus. Wikimedia Commons.

AFO: Quais são suas referências?

DM: Sobre as minhas inspirações é difícil porque muitas pessoas cruzam o caminho, mas eu venho de uma família com mulheres muito fortes. As mulheres da minha família é um lugar de muita força para mim e de muita firmeza na minha trajetória e na minha militância. A Mari é uma pessoa muito marcante. Eu me lembro exatamente do olhar naquele dia, eu a vi no dia que tudo aconteceu. Eu estava no evento que ela tinha organizado ali no centro do Rio de Janeiro e eu lembro de como ela me olhou, dela me comprimentando… As mulheres negras movem as estruturas e a Mari segue movendo. A nossa força é de outras dimensões, a gente não consegue prever. Eu gosto muito de escritas e poesias então vou citar duas referências que eu tenho e que me marcam muito. A primeira é Beatriz Nascimento, foi uma ativista e escritora brasileira. Ela representa muitas coisas que me mobilizam. 

A forma com que tudo aconteceu na vida dela, a escrita dela sobre quilombo, sobre como a gente se posiciona enquanto mulheres negras. O fato dela ter entrado na frente da amiga dela para defender da violência do companheiro e ela ter sido assassinada naquele momento vítima de feminicídio, é doloroso a gente saber que anos depois a gente continua falando dessa agenda; a gente continua lutando mas ainda assim a gente continua imaginando um futuro possível enquanto mulheres negras. E tem uma escritora africana do Malawi chamada Upile Chisala, ela é uma grande contadora de histórias e ela tem uma capacidade de trazer poder para as palavras que eu acho importante no sentido de autocuidado, da gente olhar pra dentro de nós enquanto lideranças e mulheres negras. Ela é uma inspiração importante para mim com o poder das palavras e de como se colocar no mundo. Tem muitas outras como Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, Vilma Reis, Valdecir Nascimentos são lideranças que nos impulsionam.


Para mais informações sobre o Instituto Marielle Franco, acesse o site do Instituto Marielle Franco.